Ele é o corruptor do imaginário
- Leo Viramundo
- 27 de abr. de 2017
- 2 min de leitura
A santíssima trindade é formada por "eu", "tu" e "nós". "Ele(s)" é fruto da ilusão. Resultado da inversão de papéis entre o "eu" e o "outro".
Não existe "ele(s)". O "eu" fala por si mesmo; o "tu" é o "outro" - porque nunca existimos alheios, estamos sempre em relação a todo e qualquer "outro". Na realidade, existe o "eu" e tudo o que não é "eu" é o "outro". E o "nós" é a síntese entre os dois, é a síntese da realidade, é o que se chama comumente de "Deus".
A invenção do "ele(s)" foi justamente o que nos criou um dos maiores abismos que a humanidade já conheceu. A noção de "ele(s)" foi um subterfúgio criado pelo "eu", um artifício.
Quando o "eu" se colocou como razão da existência e colocou o "outro" como parâmetro (a inversão de papéis), uma série de incongruências invadiu a realidade do "eu". Para que pudesse sustentar sua ilusória posição de motivo da realidade sem ser constantemente contradito pela presença colossal do "outro" e pelas implicações da abrangência gigantesca do "nós", criou uma divisão do "outro" em "nós" e "eles". Assim saciando sua necessidade existencial pelo "outro" sem precisar admitir a primazia deste "outro" na realidade. Sem abrir mão de sua ilusão.
Foi a invenção do "ele(s)" o que criou a propriedade, a guerra, a exploração do homem pelo homem. Uma ilusão que construiu séculos, milênios, de disputas de poder e opressão. De dor, de sofrimento, de preconceitos, de desesperança. Um abismo profundo.
Isso acontece porque o "eu" (em seu equívoco, em sua inversão) se considera razão da existência e crê que toda a realidade deve orbitar somente à sua volta. Sendo assim, ele não poderia admitir que o "outro" tenha a mesma importância e o mesmo peso na realidade. Isso acabaria com sua ilusão de primazia. Mas, como a verdade é que o "outro" é a razão da realidade, o "eu" sempre precisa da presença do "outro". Nesse momento, ele enxerga o "nós". Vendo o "outro" como parte de si, é possível admitir algum valor nele sem negar o valor absoluto dado ao "eu" por ele mesmo. Mas se todos os "outros" forem vistos como "nós" (o que é verdadeiro), a ilusão se quebra também. Daí a invenção do "ele(s)". Quando dividimos o "outro" em "nós" e "eles", permitimos que alguns desses "outros" possam ter valor (porque são considerados parte do "eu" - o "nós") e uma outra parte destes "outros" pode ser submetida pelo "eu" sem culpa - o "ele(s)".
Ninguém faz guerra contra "nós".
Só se faz guerra contra "ele(s)".
Ao longo da história, "ele" sempre foi aquele que pode ser escravizado, que pode ser assassinado, que pode ser oprimido, que pode ser coibido, que pode ser reprimido, que pode ser combatido, que pode ser destruído - sem qualquer culpa. A divisão de pessoas em "nós" e "eles" é o que nos permite sermos cruéis com nossos semelhantes sem culpa. Se olhássemos todo mundo como "nós", não faria sentido qualquer disputa ou opressão.
A realidade é formada por "eu", "tu" e "nós".
"Ele" é o corruptor do imaginário.
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