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  • Foto do escritorLeo Viramundo

A Última Dúvida de Cristo

“Eu sei a razão disso tudo. Não é querendo me gabar, mas eu sempre me considerei um cara lúcido. Sinceramente. Acredito que eu sei ver as coisas com clareza; quando consigo domar o desespero, cavalgo nele e encontro novas pradarias. Mas, cara, o pior é que eu também sempre soube que nunca seria fácil. Estrada torta. Estrada torta dos diabos!

É... É mais ou menos isso o que sou; uma estrada torta. Forasteiro de todas as castas, todos os lugares, todos os tempos, forasteiro de mim mesmo. Percorrendo vias, abrindo picadas e queimando todas as pontes que ficam para trás. Um louco. Um idiota. Um gênio. Uma pergunta sem resposta! Talvez um pouco de cada coisa. E por isso vou morrer aqui...

Ah... Pai, por que me abandonaste?”

“Vejo o teu ferimento, vejo o medo. Mesmo que o tenha escondido na força das tuas sempre belas e sensatas palavras, com as quais edificas sólidas pontes. Porque já descobri que tua muralha também foi feita de palavras; como também já sei do fecundo e vibrante jardim que se esconde sob tão pesadas pedras. Comigo podes tirar a máscara.”

“Bem, você voltou... E já me desarmou. Prossiga.”

“Eu sei bem de tua paixão fulminante. Sei bem da tempestade elétrica que é a tua alma. Mas tu mesmo o disseste, precisas cavalgar a tormenta; ela faz parte de ti! Nunca poderás fugir dela! Deves cavalgar a tormenta, vigilante sempre, ou serás engolido por ela. Lembrai que ainda tens de reerguer o templo no terceiro dia. Melhor guardar tuas forças. Se estás achando a demolição do templo difícil... mal sabes o que te espera.”

“Por que você faz isso? Chega agindo como se isso fosse uma festa de família e simplesmente acha que pode desvelar minha alma na frente de todo mundo como se tirasse a casca de uma banana! Até você quer devora-la?”

“Deixa de ser estúpido. Tu me chamaste. Tu fizeste a pergunta. Não se esqueça disso. Eu só estou lhe mostrando o medo que tens de responde-la. Pois eu sei que tu sempre soubeste a resposta.

Agora, eu dei três batidas. Tu deves escolher se abre ou não a porta. És tu quem anseia atravessa-la, não é mesmo? Embora eu ache que não estás em posição de voltar atrás... Queimaste todas as pontes, meu caro.”

“Eu... Acho que entendo o que você está falando. Então, será sempre sobre medo, afinal? A chave que fecha a gaiola que nos aprisiona está e sempre esteve em nossas mãos... Sempre o medo, não é isso? Já ouvi essa conversa. Mas eu não posso vencer o medo das pessoas. Ele é como uma onda colossal, que arrebata e esmaga tudo o que estiver no caminho de sua fúria. Eu não posso vencer o medo. O medo inverte a percepção e vemos tudo distorcido através dessa lente sutil. Como vencer o medo? Eu só falei do amor e... Olha bem onde estou! Eu falhei...”

“Rapaz esperto. Mas a questão não é ter falhado, a questão é que ainda está incompleto. Pára de esconder tua cara na areia feito um tolo! Olha de frente para o medo! Verás em cada medo, grande ou bobo, somente o reflexo de teu rosto perplexo, meu amigo. Há um lugar onde combates o medo com poderes absolutos. E, neste lugar, podes vencer todos os medos de todas as pessoas de uma única vez. Mas é um trabalho solitário. Entendes o que digo?”

“Com isso você quer dizer... Sim! Eu entendo. O sacrifício é a única linguagem que eles entendem, porque nunca ouviram outra língua. Eu poderia ter fugido. Mas se fugisse minhas palavras teriam sido todas em vão. A razão primeira do amor, seu verdadeiro motivo, é o sentimento alimentado na alma de necessidade de aumentar sua força e superar a si mesmo, não é mesmo? Amor é uma chave de potência. É o estado natural no qual dispomos de todo o nosso potencial existencial para operar a grande rebelião contra o velho EU e atingir a ansiada superação de si mesmo. Amor é incondicional. Levando o amor pelo que acredito às últimas consequências, estou aqui – para ser a prova viva do que eu sempre disse. O amor incondicional. Isso tudo eu entendo... Mas... Pai, preciso de ti. Quando eu falo ‘amor’ eles não entendem o que quero dizer.

Quando aceitei o plano de destruir o templo e o erguer novamente, eu estava com a cabeça quente. Agora que estou aqui... E se eles entenderem tudo errado?”

“Escutai, filho: Tu nunca precisaste de mim. Deixa-me ir embora. Tu possuis o grande dom. Tu possuis a clareza e a força, tu, e somente tu, podes impedir-te de cumprir tua trajetória. Deixa-me ir embora, filho, te suplico! Estou velho e cansado. Só atrasarei o teu caminho. Deixa-me ir, e segue teu destino.

Enquanto eles estiverem atrelados a mim, não conseguirão operar a grande superação. Eles têm de ver o poder dentro de si mesmos. Como tu também tens de ver. O que eles entendem ou deixam de entender não lhe pertence, não lhe cabe, lembrai bem!”

“Mas... Eu tenho medo de continuar sozinho. Todos foram desaparecendo pelo caminho e eu segui confiante porque você sempre esteve ao meu lado! Desde pequeno! Desde sempre! Com você minhas palavras ganharam força e concretude. Em você meus atos ganharam legitimidade. Por que eles atribuiriam isso a mim? Quem sou eu para...?

Como continuar sem você, Pai, velho amigo?”

“Do mesmo modo que tu tens sempre feito; dê um passo depois do outro.

Não te impeças pelas reviravoltas da estrada. És exatamente quem devias ser.

És apenas mais um, exatamente como todos eles. E é por isso que tua caminhada é tão importante. És como eles e inventaste de ser como eu. Esse exemplo é tudo o que eles precisam (e tudo o que podes oferecer) para que entendam que devem fazer eles próprios suas escolhas – como tu fazes de maneira radical, aqui.

Escutai bem o que te digo: De quem foi a escolha de ser uma exceção, senão tua? Exceções estarão sempre sozinhas. Nunca te esqueças. É o preço por fugir à regra. E é a origem de toda a tua força. Padronização é o carcereiro dessa prisão feita de medo.

Tu não nasceste para orbitar estrelas velhas e cansadas; Tu nasceste cometa!

Levanta tua cabeça. A estrada está quase no fim.”

“Ah, velho amigo... Como sempre, você tem razão...”

“Tu me criaste para isso.”

“Vai. Eu te liberto. Larga por aí mesmo o seu fardo.

Sempre serei agradecido.

Vai, retorna aos sonhos, de onde te fiz exilado.

Adeus... e muito obrigado, do fundo do meu coração.”

“Tu me orgulhas, filho. Mas quem está deixando um fardo és tu mesmo.”


O velho desapareceu. O jovem, pendurado na cruz, sorriu balbuciando algumas palavras:


“Sim... Eu tinha esquecido. Criei você pra ter razão sobre tudo...”


Depois disso, ele morreu.



***

 
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Revirando o mundo, até ao fundo abismo desce

Em seus avessos empreendimentos estéticos.

Invertendo os contextos, entretanto, se esclarece

No enigma sutil de seus invertextos entrepoéticos.

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