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  • Foto do escritorLeo Viramundo

Desconhecidos S.A.

O primeiro homem entra na padaria. Está demonstrando muita ansiedade, cansaço e parece bem estressado; está descabelado, suando e com o olhar baixo. Ele entra sem olhar à volta. Como se estivesse sozinho no lugar. Caminha apressado e senta-se à mesa no fundo. Ele é um homem jovem, forte, pobre e que aparenta trabalhar pesado por toda a vida. Parece um operário, macacão, camisa branca, roupas sujas, de quem estava no batente.

O segundo homem entra. Está calmo, porém, demonstra desapontamento; está preocupado, parece carregar um enorme peso. Mas, ao contrário do anterior, não está descabelado, nem inquieto; está simplesmente triste, frustrado. Também entra como se fosse o único ser vivo no mundo inteiro e com o olhar baixo. Senta-se à mesma mesa do primeiro homem, cumprimenta-o sem olhar-lhe nos olhos e sem palavras. É um homem já velho, de aparência cansada, também pobre, mas vestido como um homem de escritório, terno surrado, calças gastas, sapato de solas gastas.

O terceiro homem entra. Ele parece flutuar, está despreocupado, leve, sorridente; parece embriagado por algum sonho maravilhoso. Está bem vestido, um pouco suado, um pouco amarrotado, mas calmo. Faz movimentos leves, sutis e quase bailantes. Ainda assim, também entra sem olhar à sua volta, como se estivesse alienado de tudo, indiferente, como os anteriores. Senta-se graciosamente à mesa com os outros dois, cumprimenta-os também sem olhar e sem falar. Um homem jovem, pobre e bem apessoado. Usa roupas informais, baratas, mas novas. Está arrumado, por assim dizer, mesmo sem luxo.

Os três demonstram ter intimidade, uns com os outros. Como velhos amigos. Seus movimentos, apesar das diferenças de humor, são de alguma forma feitos como se estivessem à vontade entre si, mesmo que não estejam sentindo-se assim com relação às suas próprias vidas – no caso dos dois primeiros. Um intervalo de pouquíssimos segundos separa a chegada de cada um ao local.

“Hoje eu tive um dia difícil.” – diz o primeiro.

“Hoje eu fui despedido.” – diz o segundo.

“Hoje eu comi aquela secretária gostosa do departamento pessoal.” – diz o terceiro.

Eles conversam normalmente; cada um expressando muito claramente seus estados de espírito. Não se olham, estão olhando com olhares vazios para o entorno; olham pra dentro de si. Nenhum deles “atropela” os outros para falar, falam um de cada vez; são civilizados. A conversa (se é que pode ser chamada assim) continua.

“Meu cabo de segurança arrebentou. Putz! Fiquei pendurado por quase trinta minutos segurando num parapeito, até me tirarem... Quase morri! Meus braços estão latejando até agora! Tou até tremendo! Vocês sabem como é o prédio da firma e como o chefe valoriza os limpadores de janela...”

“O chefe do meu departamento estava de ovo virado. Acho que a piranha da mulher dele fica dando pra um monte de caras e dorme de calça jeans quando está com ele, saca? O cretino chegou, olhou pra minha cara, perguntou meu nome e disse que eu estava demitido! Vê se pode? Uma injustiça. E agora? Como vou poder pagar as contas? A patroa vai ficar puta, lá em casa... Deus, eu estou cansado de ficar me ferrando de graça...”

“Deus do céu! Que rabo lindo que aquela mulher tem! Eu achava que ela nunca ia dar papo pra um cara da limpeza, feito eu. To sabendo que ela trepa com o presidente da firma! E deu mole pra mim. Cês imaginam isso? E é uma gostosa! Sabem, aquela do departamento pessoal... Que rabo! Que rabo!”

O garçom se aproxima no meio da “conversa”. Espera que eles terminem de falar, imóvel, de jeito bem formal mesmo, e oferece o cardápio, sem dizer absolutamente nada.

Eles negam o cardápio com as mãos, levantando-as de forma meio desalentada e falam:

“Eu vou querer um café.” – diz o primeiro.

“Ahnn... Eu não. Vou querer só um café mesmo.” – diz o segundo.

“O senhor...?” – diz o garçom ao terceiro.“Não, não. Traz só um café pra mim, por favor.” – diz o terceiro.

O garçom age com naturalidade em relação à conversa; na verdade, ele também está alheio, agindo mecanicamente, alienado. Durante o “papo”, nenhum dos quatro personagens olha nos olhos de qualquer dos outros; um olha pra baixo, para o caderno de notas; está imóvel como uma estátua e formal como um guarda do palácio de Buckingham, exceto pelo movimento da caneta sobre o papel (o garçom), um olha para seus braços, que não param de tremer, meio ofegante, se mexe muito abre e fecha os olhos, passa as mãos pelo rosto incessantemente (o primeiro), outro olha para a rua lá fora, ou melhor, através da rua lá fora, pois ele não está vendo nada, está com um olhar perdido, sua melancolia o torna imóvel e sombrio como um morto, é a imagem do desânimo (o segundo) e o último olha para o espelho da parede, ajeitando a camisa, o cabelo, as sobrancelhas, o sorriso... Mas calmamente; está se admirando.

O garçom sai para buscar os pedidos.Os três homens continuam conversando, da mesma forma que antes.

“Cara, foi foda escalar os dois últimos andares. Teve uma hora que o parapeito rachou e eu achei que ia morrer... Foi horrível. Eu nunca senti tanto medo! Quase me borrei todo!” – diz o primeiro.

“Bem, eu estava um pouquinho atrasado... Mas, porra, cinco minutos! O que são cinco minutos? Só comigo, mesmo. E eu sempre chego na hora! Por vinte anos cheguei exatamente no horário. Logo hoje, que eu me atrasei, o cara tinha que encrencar! Eu sou um fracasso. É muito azar pra um cara só. Agora tenho até medo de chegar em casa. Deus me ajude...” – diz o segundo.

“Ah, pena que a gente só tem uma hora de almoço, não é? Eu poderia ficar comendo aquela mulher por uma semana seguida, sem parar!! Que rabo maravilhoso! Acho que vou tentar carregar a gata pro motel no fim de semana... Vai ser muito bom se eu conseguir... Ah... Que rabo! Que rabo... Será que eu devia ter medo?” – diz o terceiro.

Continuam em sua alienação. Com seus trejeitos. Com suas próprias ações e falas, com suas recordações e interesses, com seus próprios mundinhos fechados e solitários. Não se olham, como descrito anteriormente.

O garçom chega, serve três xícaras de café preto, faz uma leve reverência com a cabeça e sai. Sempre muito formal e sem olhar senão para a bandeja e a mesa. Cada um leva a sua xícara à boca, automaticamente. Nem mesmo parecem perceber que estão bebendo alguma coisa.

“Sabem, acho que eu vou deixar este emprego. É muito perigoso!!” – diz o primeiro.

“É, você disse bem. Eu Já queria deixar este emprego mesmo... Mas é perigoso ficar desempregado na minha idade...” – diz o segundo.

“Vocês estão certíssimos, têm razão. Eu não vou mais comer aquela gostosa no emprego... Já pensou como é perigoso? Se o presidente, que trepa com ela, pegar a gente na sala do almoxarifado... nem quero pensar...” – diz o terceiro.

Finalmente, eles se olham. Os três parecem rejubilarem-se. Estão com uma expressão de alívio – os três. Viram o café goela abaixo de uma vez só, quase ao mesmo tempo. Apertam as mãos uns dos outros e sorriem. Ainda assim, seus movimentos são mecânicos, como se ensaiados (ou como se rotineiros, banais). Continuam indiferentes ao resto do ambiente.

“Sabem o que eu gosto em vocês? Vocês sempre me ouvem, me apóiam e me aconselham... Pelo menos este trabalho valeu pra conhecer vocês!” – diz o primeiro.

“Eu estou muito agradecido por vocês ficarem me ouvindo lamentar... Amigos assim não se vê. E pensar que antes de vocês entrarem pra firma eu era um solitário, triste... Nos conhecemos lá no trabalho. Vocês lembram? Ainda bem que conheci vocês...” – diz o segundo.

“Rapaziada, se não fosse por vocês eu podia me ferrar! Ainda bem que eu tenho vocês pra me abrir os olhos! Estou na empresa a pouco tempo, mas já sei que valeu à pena; Eu conheci vocês e ainda comi aquela gostosa... Vocês não devem nem lembrar que a gente se conheceu lá no trabalho...” – diz o terceiro.

A conversa acaba. Mas na verdade, nem ouviram o que os outros estavam dizendo; concentraram-se em suas próprias frases; falaram de seus próprios assuntos. Estavam, na verdade, monologando em conjunto. Nenhum deles prestou atenção a nada senão a si mesmo. Sem nem perceberem, continuaram na “sua própria dimensão” por todo o tempo, como autistas. Não olharam uns aos outros; olharam sempre para si, para o que é próprio de si mesmos, para o que fazem ou pensam. Os outros eram apenas espelhos.

Eles se levantam, cada um pega suas coisas. Vão até o caixa, cada um com sua notinha na mão, procurando moedas em seu bolso. Cada um paga sua conta e saem do recinto. Olham-se de novo. Agora desatentos, mecanicamente. Despedem-se com apertos de mão.

“São... três anos, desde que nos conhecemos?” – diz o primeiro homem.

“Não creio... Há pelo menos três anos que nos conhecemos...” – diz o segundo.

“Vocês tão enganados... Já faz três anos que nos conhecemos!” – diz o terceiro.

O primeiro homem vai até o ponto de ônibus e logo entra num desses coletivos urbanos.

O segundo caminha até um carro velho e surrado, entra no veículo e sai dirigindo pela rua.

O terceiro pega uma moto simples, no canto da rua, põe o capacete, monta e segue nela o seu caminho.

Os três voltam à sua indiferença catatônica, ao olhar perdido, à expressão vívida de seus estados de espírito iniciais, em expressões faciais, em gestos, em suspiros. Cerca de 40 minutos depois de se despedirem, o terceiro homem chega num prédio velho, numa área proletária da cidade. Pára sua moto, põe nela a tranca, tira o capacete e entra no prédio. Sobe a escada e entra no apartamento 201. Ao abrir a porta, ele diz pra si mesmo:

“Que merda. Moro nesse pardieiro há sete anos! Não dá pra trazer uma mulher daquelas aqui... Preciso mudar... Queria que meus amigos morassem aqui também. Seria legal.”

Entra e fecha a porta, balançando a cabeça.

Um segundo depois que ele fecha a porta do apartamento, o segundo homem chega com seu carro em frente ao mesmo prédio. Estaciona mais adiante, ao lado da moto. Sai do carro, caminha até o prédio, sobe as escadas e fica em frente ao apartamento 202. Diz a si mesmo:

“Como eu vou dizer pra ela? Ela já me enche o saco pra mudar daqui há uns cinco anos, mas meu salário não dava. E agora? Nem salário eu tenho mais... Se pelo menos meus amigos morassem aqui também... dava pra desabafar...”

Ele abre a porta com um suspiro, baixa a cabeça e entra.

Um segundo depois que ele dá a volta na chave, trancando a porta atrás de si, o primeiro homem salta do ônibus, uma quadra à frente do mesmo prédio. Anda quase se arrastando até o edifício e sobe as escadas. Ao entrar no corredor do segundo andar fala sozinho:

“E pensar que quando aluguei este kitinete, quatro anos atrás, eu queria um no décimo andar... Eu não quero saber de altura nunca mais... Adoraria que meus amigos morassem aqui também. Poderia dividir isso com eles...”

Caminha até o 203, abre a porta sorrindo de leve, entra e fecha a porta atrás de si.


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Revirando o mundo, até ao fundo abismo desce

Em seus avessos empreendimentos estéticos.

Invertendo os contextos, entretanto, se esclarece

No enigma sutil de seus invertextos entrepoéticos.

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